Eufemesmo

(Foto: Eduardo Régis, Portugal, 2006)

Jeremias abriu a boca hoje na aula. Deu um grito tão alto que fez a escola tremer, tremer, tremer e trituradas as torres de água caíram inundando o bairro, fazendo da rua um mar de lama, dos barracos umas gaiolas para quem queria fugir.
Jeremias abriu a boca hoje na aula, gritando tão alto que fez o céu tremer e desbotar de sua tinta a óleo, um pouco da cor respingou no meu boné, algum holofote queimou porque vi sombra no meio dia, o papel pintado de nuvens pegou fogo e as frutas do pano-de-prato apodreceram instantaneamente com cor de massa de tomate.
Meu Deus, se eu estivesse com um livro aberto, ele, intangível, teria caído mesa a dentro, ultrapassando os andares, as lajes, os sofás e tapetes de crochê, teria chegado ao centro da terra, cujo magma incandescente já estava parado. A terra haveria de parar diante do meu livro agora intangível.
Mas era inerente ao fato de Jeremias ter aberto a boca hoje: ele perdeu todos os dentes, a língua, o céu da boca e a campainha para o obscuro que vive garganta abaixo. Jeremias tinha que abrir a boca hoje e descobrir essa matéria vertente que espirra tal qual o focinho uma baleia de pedra sabão.
Jeremias abriu a boca hoje na escola, tanto, tanto, tanto que desaparecendo por detrás de sua boca, ele foi sendo engolido, ao avesso, para o centro do universo perdido dentro do lado de fora de sua boca que ainda gritava aberta. Quando parou de se ouvir a voz de um grito de Jeremias, eu empurrei a carteira e estiquei até meu lápis caído no chão. Levantei meu outro braço e perguntei as horas ao professor.
“Duas e meia”.
Meu Deus, se Jeremias tivesse gritado antes, eu poderia ter pensado em outro lugar para esperar a terra parar de girar. Agora, vou ter que montar numa gaiola de passarinhos com meus lápis e trinta pedaços diferentes de um clipes destruído, para poder remar entre as ruas da favela, até poder sentar naquele morrinho verde que ainda resta. Só me resta uma chance de sair desse lugar, gritar tal qual Jeremias, cedo, antes que dêem três horas, antes da sopa de salsicha que já haveria de ter desandado com o grito de Jeremias.
Mas o professor disse: “Desculpa, são duas e vinte e cinco”.
Jeremias tinha razão, ele abriu a boca na aula certa, eu fisguei o lápis com a ponta do indicador, torci os dedões dos pés e abri a boca na sala de aula.
Jeremias abriu a boca na sala de aula hoje.

(Conrad Pichler, 8 de agosto de 2008,
Livremente adaptado de uma canção da banda Pearl Jam, "Jeremy".
– sim, o título está grafado corretamente.)

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