Cérbero

Existe uma figura mítica com três cabeças, voraz com seus dentes, animalesca nos seus gestos, mas ela tem um coração que só escuta música. Não me permito imaginar que, um dia, uma dessas cabeças tivesse falado ou que um par desses olhos fosse capaz de ler, mas entendo que elas possam ouvir a sons da flauta de Orfeu e, sem chorar, adormecer nos seus próprios braços, suas garras retraídas, em um perfeito travesseiro nunca intocado pelas lágrimas noturnas.
Guardiã de portas maiores que sua vontade de guardá-las, a criatura do Hades não esperava que outra criatura lhe tocasse a cabeça e lhe fizesse cafunés, além de um homem já morto, crivado por flechas, que convocara Odisseu ao fundo dos fundos. Porque, é claro, apenas um já morto, interno do inferno, poderia tocar o rabo da criatura com os dedos e respirar junto com suas costas e acarinhar a barriga faminta, antes de dizer, eu te amo e – depois – boa noite.
Se nem Hércules venceu pela força, o animal porteiro e triplamente confuso, nada além dos doces toques e sons inferiores e superiores dos mortais - já mortos ou não - homens poderiam aplacar o desejo devorador dos tantos dentes sedentos de sangue e vinho, e famintos de dedos, corações, rins e seios.
(Conrad Pichler, 28/V/2009)

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