Ira incandescente

("David", Michelangelo de Caravaggio, 1609)
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Toda ira é incandescente. E nas chamas que saem dela, queima-se o combustível e todo oxigênio de sua existência. Ou a ira é feita daquilo de que não é lhe próprio, poderia a chama ser ainda mais incandescente, se brotasse das entranhas indistintas de outra carne que não seja aquelas de fogo fátuo?
O que aproxima a ira às chamas é que são, assim como as musas, disformes, mas os sentidos do homem os reconhecem bem, sensíveis aos olhos, aos ouvidos e às pontas dos dedos com unhas encardidas e machucadas; a ira, as chamas e as musas sempre se fizeram dor e prazer do homem.
Distância alarga-se entre a ira e a chama, quando observamos as reentrâncias mal iluminadas da ira, observe como o corpo da chama é a própria fonte de luz, tal e qual os corpos de Caravaggio. E não é nas brasas que a ira queima seus pés descalços, sobre eles assomam-se, apenas, as cinzas de toda a madeira queimada. A ira não abrasa e é instante cinzento.
Toda ira é incandescente, mas não o é inteiramente. Seu corpo disforme, sua ardência confundem o homem em seus sentidos ou os consomem com o oxigênio e combustível, nublando-o com cinzas, dos pés à cabeça. À luz de suas qualidades, a ira se queima, restando dela a escura mancha dos dedos de unhas encardidas e machucadas, dos hematomas, das mãos de Davi ou na cabeça de Golias na obra de Caravaggio.
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(Conrad Pichler, VII-VIII/2009)

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